trabalhar
É numa noite chuvosa que D. apenas esperava o tempo passar com seus olhos abertos fitando o teto. Sabia que logo que seu telefone tocasse o saturado efeito sonoro do aplicativo de alarme às 7 da manhã, tudo começaria de novo: passaria quase meia hora na cama vendo vídeos sem graça e notícias sensacionalistas não por querer, mas apenas porque a rotina do dia o havia levado a se viciar no conteúdo fácil e digerido do twitter, após isso levantaria com dificuldade rosnando de desgosto e repetindo por várias vezes "ai que preguiça" para todos os membros de sua família, comportamento tido como irônico e que já tinha se tornado como que quase uma piada interna sua, mas que parecia representar uma exaustão bem mais profunda, e por fim, depois de um café ensosso e mal tomado, embarcaria no comboio diário para se dirigir ao escritório de sua empresa, onde seria lembrado de toda sua incompetência e falta de responsabilidade com o trabalho.
Ele não queria repetir o ciclo, viu os prédios com as luzes apagadas através da varanda do lado de fora de seu quarto e pensou em como haveria chegado nesse momento, viu como do sétimo andar os carros no estacionamento do condomínio adiante pareciam muito pequenos, pegou uma tesoura de sua mesa que não era arrumada desde 2 semanas atrás e foi em direção ao parapeito da varanda. Em alguns retalhos na rede de proteção, o vento agora batia em seu peito sem restrições. Toda essa liberdade conquistada no espaço o assegurava de que não teria que trabalhar quando o dia amanhecesse, ele voava pela noite.